Fala, pessoal, sejam bem-vindos à edição #9 da newsletter “dudu escreve”. É sempre um prazer ter vocês por aqui.
As inspirações principais do texto de hoje não foram coisas que vivi, mas alguns papos que tive, histórias que ouvi, textos que li sobre abandono paterno, filmes com essa temática e, em especial, uma reportagem que aponta que muitos filhos (homens) duvidam do amor paterno. Além do fato de o Brasil ser um país de muitas mães solteiras.
Este não é o primeiro que escrevo sobre o assunto, mas é o primeiro que posto. Talvez por insegurança ou por medo de estar atravessando uma fronteira perigosa falando de algo que nunca passei.
Mas do outro lado abandono, tem quem fica e, por isso, o tema da edição #9 também é o papel exercido pelas mães. Que normalmente esperam 9 meses, mas às vezes menos. Às vezes mais. Às vezes uma vida. E que às vezes se tornam mães quando menos esperam. Mas que sempre se transformam, de alguma maneira. E, na maioria das vezes, são sobrecarregadas com a jornada dupla ou tripla. Mães que criam, educam e se desdobram para colocar no mundo seres humanos melhores.
Espero que gostem.
Dicas da edição #9:
Dica musical (para ler ouvindo): Todo Homem - Zeca Veloso
Dica literária: A filha perdida - Elena Ferrante
Dica de filme: Os Meyerowitz: Família Não Se Escolhe - Noah Baumbach (Netflix)
Dedicatória
Às mães, porque não poderia ser diferente.
À Letícia, minha irmã, que passou por uma transformação linda de ver e que é, há 2 anos e 5 meses, uma ótima mãe para a minha sobrinha. E seguirá sendo.
As bonecas só falam “mamãe”
Depois de uma hora e quinze no busão, Danilo chegou em casa da escola. Largou a mochila em cima da mesa - o terror de Perla: “trazendo sujeira da rua para a mesa em que a gente come, meu filho” - e foi para o quarto depois de mais um simulado para o ENEM. Ele tinha ido muito mal e sabia que seria salvo apenas pela redação e pela química. A primeira, pelo tanto que gostava de ler e escrever, a segunda, por tudo que aprendeu com a mãe, que tinha estudado só para ensinar a ele.
A pressa era tanta que nem reparou que no sofá, Perla estava prostrada, imóvel, mirando a televisão desligada.
Depois de duas horas de sono, o garoto acorda pelas 19h e a encontra na mesma posição, da qual não saíra desde às 14h. Ainda meio sonolento e sem notar os olhos vermelhos da mãe, Danilo deita em seu colo, sem dizer uma palavra. A mãe afaga seu cabelo, mas não consegue sustentar o momento carinhoso. Não chorou porque já estava seca, depois de ter ficado aos prantos desde as 4h da manhã, quando foi buscar uma água na cozinha de madrugada e olhou para as covardes palavras que, em resumo, diziam: “Não volto mais”.
O garoto finalmente percebe a cara da mãe, e ela, só com o olhar, suplica o seu silêncio. Danilo, que voltou a aguçar a sua sensibilidade, abraça a mãe bem forte, que o afasta pelo simples fato de seu toque ser idêntico ao do progenitor que não mais voltaria a ver. O adolescente entende, mesmo sem saber o motivo, e se recolhe. Sai em busca do pai, que não terá nome nesta história, por não merecer e por ter escolhido riscar o seu nome da vida de Perla e Danilo. O garoto não o encontra, achando que seria mais um episódio de bebedeira e briga no bar da esquina.
Mas desta vez a atitude, igualmente frouxa, tinha sido outra. Ele suspeita quando vê a sua gaveta do armário vazia, mas confirma quando abre a portinhola sob a imagem da Nossa Senhora de Fátima da sala e descobre que as suas economias não estavam mais ali. Faltava pouco para inteirar o valor da primeira visita de avião do menino e da mãe ao avô em Fortaleza. As notas e moedas, que eram os trocos de lanches e das contas pagas na lotérica, agora estavam na mão do homem que apenas o colocara no mundo.
E lembrou da história da professora, que o marido deixou com três crianças pequenas para ficar com a amante e nunca mais voltou. Do seu melhor amigo da sala, que o pai desprezava porque era gay. Da sua namorada, cujo pai pagava uma pensão miserável e um jantar por mês para calar a sua boca, enquanto os filhos do segundo casamento viajavam para Angra dos Reis e tinham um ótimo plano de saúde. E de outros colegas com pais que bebiam e sumiam ou bebiam e batiam, que traíam sem dó, pais ausentes, apesar de residentes na mesma casa.
O menino, quando olhava à sua volta, com tantos exemplos claros, inclusive o seu, notou que, nas histórias de abandono, eram as mães que ficavam. Quase sempre.
Danilo percebeu que, ainda nos tempos atuais, seguia muito fácil ser pai.
Pela primeira vez, aos 16 anos de idade, pensou no quanto dá trabalho pensar no cotidiano de uma criança, desde o momento em que acorda até quando vai dormir. E também perguntar o que chateia, buscar na escola, levar ao médico, dar carinho e tudo mais que envolve o dia a dia de uma criança. E que isso parecia ser um extra aos pais, e não a obrigação que era às mães.
Deve ser por isso que as bonecas só falam “mamãe”.
Danilo notou que aos pais que tinha como referência, quando encheram o saco de ser pai, ou melhor, de ser o que se convencionou ser tarefa primordial da mãe, bastou inventar uma desculpa qualquer e seguir sua vida, por algum motivo banal dito com tom de prioridade máxima. O fim do amor, o início de outro, a carreira, a incompatibilidade da vida paterna com a vida escolhida ou o desejo de liberdade. Não importa: pais abandonaram ou foram embora esquecendo o pedaço de si que deixaram no mundo para outra pessoa cuidar. Outra pessoa não. Para a mãe cuidar. Perlas, Marias, Tânias, Adrianas, Simones, Júlias.
O menino, instantaneamente mais cascudo, conseguiu convencer sua mãe a tomar um banho, ligou para sua amiga do trabalho explicando a situação e a colocou para dormir.
Acabou seu dia tentando acreditar que ainda podia ser amado. Tentando não pensar que a culpa era dele. E recuperar a confiança. E colocar na cabeça que não deveria ficar tentando recuperar a atenção e o amor do pai. Já que o amor nunca existiu do lado de lá.
Antes de pegar no sono, sem chorar um minuto sequer, cravou uma profecia a si mesmo: se um dia concretizasse o sonho de ter um filho, não seria pai.
Danilo queria ser mãe.
dudu moraes da dudu escreve - muito a dizer
E esta foi a edição #9!
Nos vemos no dia 19/10 na edição #10 desta série, sempre às 10h!
Muito obrigado pela leitura!
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Eita!!! Esse é pra chorar de tristeza por constatar tanta realidade.😢 sem palavras... como o ser humano ainda tem que evoluir 😔
tem uma frase que adoro que fala assim: “a infância é um chão que a gente pisa a vida inteira.“ e de fato ela é a nossa própria origem, forma tudo o que seremos um dia. esse abandono deixa tantas marcas em quem vivencia e por isso é urgente e necessário falar sobre esse tema sim! 🧑🧒🧒