Fala, pessoal, sejam bem-vindos ao texto #5 da newsletter “dudu escreve”. É sempre um prazer ter vocês por aqui.
Antes de tudo: habemus adesivos espalhados pela cidade! A ideia é tentar conseguir angariar novos leitores fora da minha bolha. Caso queira um para colar em algum lugar que faça sentido, é só falar que eu ainda tenho muitos em casa. Um deles tá no Arpoador:
Agora vamos à história do texto de hoje.
Nos idos de 2020, no auge da pandemia, abri a revista piauí e bati o olho no seguinte anúncio:
CONCURSO LITERÁRIO
Cubra-se de coragem, respire fundo e venha se arriscar no desafio Encaixe a frase.
Todo mês propomos uma frase aleatória e um ingrediente improvável, que deverão ser incorporados a uma história com começo, meio e fim. Os participantes devem enviar um texto de até 5 mil toques ou uma HQ de 1 página até o dia 20 de agosto para: concurso@revistapiaui.com.br.
Se for o escolhido, você será publicado na próxima edição da piauí.
Participe e submeta-se ao nosso impiedoso escrutínio.
FRASE A SER ENCAIXADA: A festa acabou, a luz apagou, o bonde não veio. E agora, José?
Elemento estranho: Periquita
O resultado foi um texto parecido com o que publico hoje, e que eu particularmente gostei bastante. Como não venci o concurso, ele acabou esquecido nas profundezas do meu Google Drive, até que foi achado em um dia de faxina geral que fiz há algumas semanas.
Como não ganhei o concurso e quase ninguém leu o original - arrisco dizer que apenas minha mãe, minha tia Marilena, meu amigo Bernardo e os jurados da revista piauí - aproveitei para reescrevê-lo, já que sempre há algo a melhorar, e porque, depois de publicado e lido, as palavras dos textos são fixadas como as tatuagens indeléveis nos leitores que foram tocados por elas. Essa quem me ensinou foi a Lygia Fagundes Telles.
E como não tenho qualquer mágoa de não ter levado o concurso (será?), deixo aqui o link do texto vencedor, que é ótimo: SAIA DESSA, JOSÉ!
Aviso aos navegantes: como explicado, o texto foi enviado à revista piauí, e, por isso, escolhi referências à esquerda para escrevê-lo e até considerei chamá-lo de “Romance comunista” se não fosse a regra do concurso de incluir a palavra “periquita” - que acabou gerando o título “Aves descobertas”. Se fosse endereçado à Revista Veja, as referências certamente seriam outras. Com isso explicado, espero firmemente que, caso deteste as figuras referenciadas, o leitor tenha a maturidade de seguir com a leitura e não desistir dela por uma besteira dessas.
Dicas da edição #5:
Dica musical: Paula e Bebeto do Milton Nascimento e Just the way you are do Barry White (para ler ouvindo).
Dica literária: A palavra que resta de Stênio Gardel. Eu não conhecia o Stênio, mas vi que o cara ganhou o National Book Award, um dos mais importantes prêmios literários dos States, concedido anualmente aos melhores livros escritos em ou traduzidos para inglês, e resolvi comprar o livro. Se liga na sinopse:
Neste primoroso romance de estreia, acompanhamos a trajetória de Raimundo, homem analfabeto que na juventude teve seu amor secreto brutalmente interrompido e que por cinquenta anos guardou consigo uma carta que nunca pôde ler.
Certamente uma das minhas leituras mais bonitas de 2024. Vai por mim, dê uma chance!
Dedicatória
Ao amor. E a todos aqueles que amam.
Vamos ao texto!
#5 - Aves descobertas
Rosa conheceu Ernesto no auge da pandemia em um aplicativo de relacionamento. Seus perfis eram bem trendy, zero kitsch. Ele, mineiro de Itabira, morando no Rio desde criança, e bissexual, depois de longos anos jurando que era hétero. Ela, carioca da gema e pansexual convicta, de modo que deixava até mastigado no seu perfil o que significava para facilitar aos desatualizados: “me sinto atraída por pessoas de todos os tipos de gêneros ou orientações sexuais, se me curtiu, dá um like, vai que rola”.
Ernesto deu like em Rosa sem pestanejar. E ela deu nele, sem muita certeza do que viria pela frente. Ele, Ernesto José, não Guevara. Ela, Rosa Brasil, não Luxemburgo.
Começaram a trocar ideia no chat do aplicativo e logo passaram para o WhatsApp, já que a prosa rendeu e o encontro ainda não era uma realidade possível.
Nas primeiras conversas descobriram que ambos eram adeptos da monogamia - porque, ao contrário do que a família tradicional brasileira pensa, pessoas fora da bolha heteronormativa também podem praticantes de BDSM: bom demais ser monogâmico.
Depois de alguns dias conversando intensamente, combinaram a primeira chamada de vídeo, e o papo fluiu mais ainda.
Os gostos eram parecidos: samba, fotografia, cozinha, bordado, Botafogo, litrão, tabaco orgânico e a paixão por Lula. Mas por aquele Lula, que liderava as grandes greves de operários no ABC Paulista, e não o da Carta ao povo brasileiro de 2002.
Rosa cravou, depois de horas conversando, que ambos eram membros de um grupo que denominou de "esquerda com olheiras", ela explica: aqueles que perderam o ânimo inicial e a sede pela revolução, mas que ainda vão às ruas em momentos capitais como as homenagens à Marielle Franco e o "vira-voto" de 2018, este último que certamente acrescentou alguns milímetros às suas olheiras, ao ver, no crepúsculo do fatídico 28 de outubro, os 55,13% de votos válidos d’Aquele-Que-Não-Deve-Ser- Nomeado.
Descobriram que foram aos mesmos comícios em tempos remotos, ambos filiados e orgulhosos da estrela vermelha que trajavam no peito. Parecia que o match não tinha sido apenas no aplicativo.
Marcaram de se encontrar, quando a Covid arrefecesse, na Praça São Salvador, para tomar cachaça e dançar forró, ou no Bar do Nanam, para um samba regado a cerveja. Mas eles sabiam que o encontro estava distante, ainda mais com a lista de comorbidades de Ernesto, que agora fumava apenas charuto, mas, cheio de medo, dissera que sairia apenas quando fosse realmente seguro.
Eles passaram a se falar todo dia, com vídeo ou sem vídeo, e a vontade crescendo, como tinha que ser. O tempo foi passando e os dois acumulando chamadas, incluindo até os amigos, que apoiavam cada vez mais o casal.
Só que faltava aquilo. Ernesto até sugeriu nudes e sexo virtual, mas Rosa disse que não curtia e que preferia esperar pelo pele na pele.
Pois bem. Quis o destino que a data considerada segura pelas autoridades sanitárias para encontrar com outras pessoas fosse justamente 13, logo TREZE, semanas depois do primeiro papo de Ernesto e Rosa. Os apaixonados, que além de lulistas eram também fãs de Zagallo, sentiram que era um sinal.
O gajo estava meio receoso com a Covid, mas a vontade era grande, e a ocasião tinha que ser comemorada, ainda que fosse em casa, ainda meio “quarentenados”, mas unidos, como sempre. Agora fisicamente.
Ernesto buscava não mostrar a ansiedade, mas falhava. Aproveitou a energia do nervosismo para agir. Renovou as essências que perfumavam a casa, encomendou um café do Alto Caparaó, que um amigo vendia na Junta Local e o vinho recomendado pela futura sogra, que, naturalmente, também só conhecia por videochamada.
Limpou a vitrola e testou os LPs do Caetano. Comprou até uma panela nova para que as fotos do preparo do magret de canard à l’orange vegetariano saíssem instagramáveis, já que o perfil de receitas de Rosa era bombado na rede. Nem vegetariano ele era e a verdade é que de pato, gosto de pato ou textura de pato, o magret vegetariano não tinha nada, mas a receita escolhida foi essa apenas pelo fato de Ernesto ter descoberto que Rosa era uma daquelas eternas estudantes de francês e tinha o sonho de fazer um intercâmbio gastronômico na Cidade Luz. Tudo para agradar.
Rosa, antes de ir para a casa de Ernesto em Laranjeiras, além de se perfumar toda, passou na casa da mãe para buscar um álbum de fotos, que ela disse, em uma troca de mensagens voluptuosas, que seria o entretenimento do casal na clássica lombeira pós-coito.
E assim chegou Rosa: cheirosa, de sandália Linus no pé, óculos Zerezes no rosto e o álbum empoeirado embaixo do braço.
Quando abriu a porta e viu esta imagem, que o lembrou da Vênus de Botticelli, José não resistiu, e tascou-lhe um beijo de cinema, correspondido amorosamente por Rosa que logo abriu um lindo sorriso. Depois desse momento instintivo, o casal resolveu seguir a noite com calma. Beberam, jantaram e paqueraram como se fosse a primeira vez.
Tudo estava perfeito.
Só que hora do vamo ver, Ernesto se chocou ao não encontrar a periquita esperada, mas um piu piu para ninguém botar defeito. Como sabido, o rapaz era bi, mas achava que os meses juntos tinham sido suficientes para saber onde estava se metendo, com o perdão do trocadilho. Naquele momento, o sangue correu quente em suas veias abertas latino-americanas. Ernesto José queria ser Guevara, pegar a sua motocicleta e sumir pelo continente.
Com as luzes acesas e os olhos vidrados no que via, só o que vinha à cabeça era Carlos Drummond, seu conterrâneo de Itabira: “A festa acabou, a luz apagou, o bonde não veio. E agora, José?”
E agora, José?
Respirou fundo e viu (e como viu) que, apesar de grande, aquilo não era nada. Amava Rosa como nunca antes na história deste país alguém tinha amado outro alguém. E assim partiu para o abraço, beijos, carícias e deleites mil.
Após o ganso afogado, já que estamos falando de aves descobertas, Rosa pegou seu álbum de infância, que tinha na capa seu nome de batismo. Ernesto José lacrimejou e uma felicidade sem tamanho se instaurou em seu coração. Rosa fora, na origem, Luis Inácio.
E esse foi o texto #5!
Nos vemos no dia 24/08 na edição #6 desta série, às 10h, na sua caixa de entrada!
Muito obrigado pela leitura!
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o plot twist haha 🦜🐣
Excelente!
Amo histórias que seguram a minha atenção e que, ao final, ainda me presenteiam com uma surpresa...
Obrigada, Dudu!🌷🌷🌷